LIVRO
SEGUNDO
MUNDO
ESPÍRITA OU DOS ESPÍRITOS
CAPÍTULO
VI– VIDA ESPÍRITA
IV- Ensaio Teórico
sobre a Sensação nos Espíritos
(Questão 257)
A
alma tem a percepção dessa dor: essa percepção e o
efeito.
A
lembrança que dela conserva pode ser muito penosa, mas não
pode implicar ação física. Com efeito, o frio e o calor não podem desorganizar
os tecidos da alma; a alma não pode regelar-se nem queimar. Não vemos todos os
dias, a lembrança ou a preocupação de um mal físico produzir os seus efeitos? E
até mesmo ocasionar a morte?
Todos sabem
que as pessoas que sofreram amputações sentem dor no membro que não mais
existe. Seguramente não é esse membro a sede nem o ponto de partida da dor: o
cérebro a impressão, eis tudo. Podemos, portanto, supor que há
qualquer semelhante nos sofrimentos dos Espíritos depois da morte.
Um estudo
mais aprofundado do períspirito, que desempenha papel tão importante os
fenômenos espíritas — nas aparições vaporosas ou tangíveis, no estado do
Espírito no momento da morte, na ideia tão frequente de que ainda está vivo na
situação surpreendente dos suicidas, dos supliciados, dos que se
absorveram nos prazeres materiais, e tantos outros fatos —, veio lançar
luz sobre esta questão, dando lugar às explicações de que apresentamos um
resumo.
O
períspirito é o liame que une o Espírito à matéria do corpo; é
tomado do meio ambiente, do fluido universal; contém ao mesmo
tempo eletricidade, fluido magnético, e até um certo ponto, a própria
matéria inerte. Poderíamos dizer que é a quintessência da matéria. É o
princípio da vida orgânica, mas não o da vida intelectual, porque esta
pertence ao Espírito. É também o agente das sensações externas. No corpo, estas
sensações se localizam nos órgãos que lhes servem de canais. Destruído o corpo,
as sensações se tornam generalizadas. Eis porque o Espírito não diz que sofre
mais da cabeça do que dos pés.
É necessário, aliás, nos precavermos de
confundir as sensações do períspirito independente com as do corpo: não podemos
tomar essas últimas senão como termo de comparação, e não como analogia.
Liberto do corpo, o Espírito pode sofrer, mas esse sofrimento não é o mesmo do
corpo; não obstante, não é também um sofrimento exclusivamente moral, como o
remorso, pois ele se queixa de frio e de calor. Mas não sofre mais no inverno
do que no verão: vimo-los passar através das chamas sem nada experimentar de
penoso, o que mostra que a temperatura não exerce sobre eles nenhuma impressão.
A
dor que sentem não é a dor física propriamente dita: é
um vago sentimento interior, de que o próprio Espírito nem sempre tem perfeita
consciência, porque a dor não está localizada e não é produzida por agentes
exteriores. É antes uma lembrança, também penosa. Algumas vezes, há
mais que uma lembrança como veremos.
A
experiência nos ensina que, no momento da morte, o períspirito se desprende
mais ou menos lentamente do corpo. Nos primeiros instantes o Espírito não
compreende a sua situação; não acredita que morreu; sente-se vivo; vê o seu
corpo de lado, sabe que é o seu e não entende por que está separado.
Esse estado
dura o tempo em que existir um liame entre o corpo e o períspirito. Um suicida
nos dizia: — “Não, eu não estou morto”, e acrescentava: “e, entretanto,
sinto os vermes que me roem”. Ora, seguramente, os vermes não roíam o
períspirito e menos ainda o Espírito, mas o corpo.
Como a
separação do corpo e do períspirito não estava completa, havia uma espécie de
repercussão moral, que lhe transmitia a sensação do que se passava no corpo.
Repercussão não é bem o termo, pois poderia dar ideia de um efeito muito
material. Era antes a visão do que se passava no corpo, ao qual o períspirito
continuava ligado, que produzia essa ilusão tomada como real. Assim, não se
tratava de uma lembrança, pois durante a vida ele fora roído pelos vermes: era
uma sensação atual.
Vemos, pois, as deduções que podemos tirar dos fatos quando atentamente
observados. Durante a vida, o corpo recebe as impressões e as transmite ao
Espírito, por intermédio do períspirito, que constitui, provavelmente, o que se
costuma chamar de fluido nervoso. O corpo, estando morto, não sente mais nada,
porque não possui Espírito nem períspirito.
O
Espírito, desligado do corpo, experimenta a sensação, mas
como esta não lhe chega por um canal limitado, torna-se geral. Como o
períspirito é apenas um agente de transmissão, pois é o Espírito que possui a
consciência, deduz-se que, se pudesse existir períspirito sem Espírito, ele não
sentiria mais do que um corpo morto. Da mesma maneira, se um Espírito não
tivesse períspirito, seria inacessível a todas as sensações penosas: é o que
acontece com os Espíritos completamente purificados.
Sabemos que, quanto mais o Espírito se
purifica, mais eterizada se torna a essência do períspirito, de maneira que a
influência material diminui à medida que o Espírito progride, ou seja, à medida
que o períspirito se torna menos grosseiro.
Mas, dir-se-á, as sensações agradáveis são transmitidas ao Espírito pelo
períspirito, tanto quanto as desagradáveis. Ora, se o Espírito puro é
inacessível a umas, deve sê-lo igualmente às outras. Sim, sem dúvida,
àquelas que provêm unicamente da influência da matéria que conhecemos: o
som dos nossos instrumentos, o perfume das nossas flores não lhe produz
nenhuma impressão, e, não obstante, eles gozam de sensações íntimas, de um
encanto indefinível, das quais não podemos fazer a mínima ideia, porque estamos
para elas como os cegos de nascença para a luz.
Sabemos que
elas existem, mas de que maneira? Aí se detém o nosso conhecimento. Sabemos que
o Espírito tem percepção, sensação, audição, visão, que essas faculdades são
atributos de todo o seu ser, e não apenas de certos órgãos, como nos homens.
Mas ainda uma vez de que forma? Isso é o que não sabemos. Os próprios Espíritos
não podem explicar-nos porque a nossa linguagem não foi feita para exprimir
ideias que não possuímos, assim como, na língua dos selvagens, não há termos
para a expressão de nossas artes, nossas ciências e nossas doutrinas
filosóficas.
Ao dizer que
os Espíritos são inacessíveis às impressões da nossa matéria, queremos falar
dos Espíritos mais elevados, cujo envoltório eterizado não encontra termos de
comparação na Terra. Não se dá o mesmo com aquele cujo períspirito é mais
denso, pois ele percebe os nossos sons e sente os nossos odores, mas não por
uma parte determinada do seu organismo, como quando vivo. Poderíamos dizer que
as vibrações moleculares se fazem sentir em todo o seu ser chegando, assim, ao sensorium
commune, que e o próprio Espírito, mas de maneira diversa, produzindo
talvez uma impressão diferente que carreta uma modificação na percepção. Eles
ouvem o som da voz, e no entanto nos compreendem sem a necessidade da palavra,
pela simples transmissão do pensamento, o que é demonstrado pelo fato de ser
essa penetração mais fácil para o Espírito desmaterializado.
A
faculdade de ver é um atributo essencial da alma, para a qual não há
obscuridade, e apresenta-se mais ampla e penetrante entre os que estão mais
purificados. A alma, ou o Espírito, tem portanto, em
si mesma a faculdade de todas as percepções. Na vida corpórea, elas são
obliteradas pela grosseria dos nossos órgãos na vida extracorpórea libertam-se
mais e mais, à medida que se torna menos denso o envoltório semi-material.
Tomado do meio ambiente, esse envoltório varia segundo a natureza dos mundos.
Ao passar de um mundo para outro, os Espíritos mudam de envoltório, como
mudamos de roupa ao passar do inverno ao verão, ou do polo ao equador.
Os
Espíritos mais elevados, quando vêm visitar-nos, revestem o períspirito
terrestre, e então as suas percepções se assemelham as dos Espíritos vulgares;
mas todos eles, inferiores ou superiores, não ouvem e não sentem senão o que
querem ouvir e sentir. Como não possuem órgãos sensoriais, podem
tornar vontade as suas percepções ativas ou nulas, havendo apenas uma
coisa que são forçados a ouvir: os conselhos dos bons Espíritos.
A vista é
sempre ativa, mas eles podem tornar-se invisíveis uns para os outros. Conforme
a classe a que pertençam, podem ocultar-se dos que lhes são inferiores, mas não
dos superiores. Nos primeiros momentos após a morte, a vista do Espírito
é sempre turva e confusa, esclarecendo-se na proporção em que ele se liberta e
podendo adquirir a mesma clareza que tinha durante a vida, além da
possibilidade de penetrar nos corpos opacos. Quanto à sua extensão através do
espaço infinito, no passado e no futuro, depende do grau de pureza e elevação
do Espírito.
Toda esta teoria, dir-se-á, não é muito tranquilizadora. Pensávamos que, uma
vez desembaraçados do nosso envoltório grosseiro, instrumento de nossas dores,
não sofreríamos mais, e nos ensinais que sofreremos ainda, pois podemos ainda
sofrer, e muito, durante longo tempo. Mas podemos também não sofrer mais, desde
o instante em que deixamos esta vida corpórea.
Os sofrimentos deste mundo decorrem, às vezes, de nossa própria vontade.
Remontando à origem, veremos que a maioria são consequência de causas que
poderíamos ter evitado. Quantos males, quantas enfermidades o homem deve apenas
aos seus excessos, à sua ambição, às suas paixões, enfim? O homem que tivesse
vivido sempre sobriamente, que não houvesse abusado de nada, que tivesse sido
sempre de gostos simples e desejos modestos, se pouparia de muitas tribulações.
O mesmo acontece ao Espírito: os sofrimentos que ele enfrenta são sempre
consequência da maneira por que viveu na terra. Não terá, sem dúvida, a
gota e o reumatismo, mas terá outros sofrimentos que não serão menores.
Já vimos que esses sofrimentos são o resultado dos laços que ainda existem
entre o Espírito e a matéria. Que quanto mais ele estiver desligado da
influência da matéria, quanto mais desmaterializado, menos sensações penosas
sofrerá. Depende dele afastar-se dessa influência, desde esta vida, pois tem o
livre-arbítrio e por conseguinte a faculdade de escolha entre o fazer e o não
fazer. Que dome as suas paixões animais; que não tenha ódio, nem inveja, nem
ciúme, nem orgulho; que não se deixe dominar pelo egoísmo; que purifique sua alma,
pelos bons sentimentos; que pratique o bem; que não dê às coisas deste mundo
senão a importância que elas merecem; e, então, mesmo sob o seu envoltório
corpóreo, já se terá purificado, desprendido da matéria, e quando o deixar, não
sofrerá mais a sua influência. Os sofrimentos físicos por que tiver passado não
lhe deixarão nenhuma lembrança penosa; não lhe restará nenhuma impressão
desagradável, porque estas não afetaram o Espírito, mas apenas o corpo;
sentir-se-á feliz por se ter libertado, e a tranquilidade de sua consciência o
afastará de todo sofrimento moral.
Interpelamos sobre o assunto milhares de Espíritos, pertencentes a todas as
classes sociais, a todas as posições. Estudamo-los em todos os períodos da vida
espírita, desde o instante em que deixaram o corpo. Seguimo-los passo a passo
na vida de além-túmulo, para observar as modificações que neles se operavam,
nas suas ideias, nas suas sensações. E a esse respeito os homens vulgares não
foram os que nos forneceram menos preciosos elementos de estudo.
Vimos sempre
que os sofrimentos estão em relação com a conduta, da qual sofrem as
consequências, e que essa nova existência é uma fonte de felicidade inefável
para aqueles que tomaram o bom caminho. De onde se segue que os que sofrem é
porque assim quiseram, e só devem queixar-se de si mesmos, tanto no outro mundo
quanto neste.
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