LIVRO SEGUNDO
MUNDO ESPÍRITA OU DOS ESPÍRITOS
CAPÍTULO VII– RETORNO À VIDA CORPORAL
VIII- Esquecimento do Passado
(Questões 392 à 399)
O Espírito encarnado perde a lembrança do seu passado porque o homem nem pode nem deve saber tudo; Deus assim o quer na sua sabedoria. Sem o véu que lhe encobre certas coisas, o homem ficaria ofuscado como aquele que passa sem transição da obscuridade para a luz Pelo esquecimento do passado, ele é mais ele mesmo.
Como pode o homem ser responsável por atos e resgatar faltas dos quais não se recorda? Como pode aproveitar-se da experiência adquiria em existências que caíram no esquecimento? Seria concebível que as tribulações da vida fossem para ele uma lição, se pudesse lembrar-se daquilo que as atraiu mas desde que não se recorda, cada existência é para ele como se fosse a primeira, e é assim que ele está sempre a recomeçar. Como conciliar isto com a justiça de Deus?
A cada nova existência o homem tem mais inteligência e pode melhor distinguir o bem e o mal. Onde estaria o seu mérito se ele se recordasse de todo o passado? Quando o Espírito entra na sua vida de origem (a vida espírita) toda a sua vida passada se desenrola diante dele; vê as faltas cometidas e que são causa do seu sofrimento, bem como aquilo que poderia tê-lo impedido de cometê-las; compreende a justiça da posição que lhe é dada e procura então a existência necessária a reparara que acaba de escoar-se. Procura provas semelhantes àquelas por que passou, ou as lutas que acredita apropriadas ao seu adiantamento e pede a Espíritos que lhe são superiores para o ajudarem na nova tarefa a empreender, porque sabe que o Espírito que lhe será dado por guia nessa nova existência procurará fazê-lo reparar suas faltas, dando-lhe uma espécie de intuição das que ele cometeu. Essa mesma intuição é o pensamento, o desejo criminoso que frequentemente vos assalta e ao qual resistis instintivamente, atribuindo a vossa resistência, na maioria das vezes, aos princípios que recebestes de vossos pais, enquanto é a voz da consciência que vos fala e essa voz e a recordação do passado, voz que vos adverte para não cairdes nas faltas anteriormente cometidas. Nessa nova existência, se o Espírito sofrer as suas provas com coragem e souber resistir, eleva-se a si próprio e ascenderá na hierarquia dos Espíritos, quando voltar para o meio deles.
Comentário de Kardec: Se não temos, durante a vida corpórea, uma lembrança precisa daquilo que fomos, e do que fizemos de bem ou de mal em nossas existências anteriores, temos, entretanto, a sua intuição. E as nossas tendências instintivas são uma reminiscência do nosso passado, as quais a nossa consciência, — que representa o desejo por nós concebido de não mais cometer as mesmas faltas — adverte que devemos resistir.
Nos mundos mais adiantados que o nosso, onde não existem todas as nossas necessidades físicas e as nossas enfermidades, os homens compreendem que são mais felizes do que nós? A felicidade, em geral, é relativa; sentimo-la por comparação com um estado menos feliz. Como, em suma, alguns desses mundos, embora melhores que o nosso, não chegaram ao estado de perfeição, os homens que os habitam devem ter motivos de aborrecimento a seu modo. Entre nós, o rico, ainda que não sofra a angústia das necessidades materiais, como o pobre, não está menos sujeito a tribulações que lhe amarguram a vida. Ora, pergunto se, na sua posição, os habitantes desses mundos não se sentem tão infelizes quanto nós e não lastimam a própria sorte, já que não têm a lembrança de uma existência inferior para comparação?
A isto é preciso dar duas respostas diferentes. Há mundos, entre aqueles de que falas, em que os habitantes, situados, como dizes, em melhores condições que vós, nem por isso estão menos sujeitos a grandes desgostos, e mesmo a infelicidades. Estes não apreciam a sua felicidade pelo fato mesmo de não se lembrarem de um estado ainda mais infeliz. Se, entretanto não a apreciam como homens, o fazem como Espíritos.
Comentário de Kardec: Não há, no esquecimento dessas existências passadas sobretudo quando foram penosas, alguma coisa de providenciai, onde se revela a sabedoria divina?
É nos mundos superiores, quando a lembrança das existências infelizes não passa de um sonho mau que elas se apresentam à memória. Nos mundos inferiores as infelicidades presentes não seriam agravadas pela recordação de tudo aquilo que tivesse suportado?
Concluamos, portanto, que tudo quanto Deus fez é bem feito e que não nos cabe criticar as suas obras e dizer como ele deveria ter regulado o Universo.
A lembrança de nossas individualidades anteriores teria gravíssimos inconvenientes. Poderia em certos casos, humilhar-nos extraordinariamente; em outros, exaltar o nosso orgulho e por isso mesmo entravar o nosso livre-arbítrio Deus, nos deu para nos melhorarmos, justamente o que nos é necessário e suficiente; a voz da consciência e nossas tendências instintivas, tirando-nos aquilo que poderia prejudicar-nos. Acrescentemos ainda que, se tivéssemos a lembrança de nossos atos pessoais anteriores, teríamos a dos atos alheios, e esse conhecimento poderia ter os mais desagradáveis efeitos sobre as relações sociais. Não havendo sempre motivo para nos orgulharmos do nosso passado, é quase sempre uma felicidade que um véu seja lançado sobre ele. Isso concorda perfeitamente com a doutrina dos espíritos sobre os mundos superiores aos nossos. Nesses mundos, onde não reina senão o bem, a lembrança do passado nada tem de penosa; é por isso que neles se recorda com frequência a existência precedente. Como nos lembramos do que fizemos na véspera. Quanto à passagem que se possa ter tido por mundos inferiores, a sua lembrança nada mais é, como dissemos, que um sonho mau.
Nem sempre podemos ter algumas revelações sobre as nossas existências anteriores. Muitos sabem, entretanto, o que foram e o que fizeram; se lhes fosse permitido dizê-lo abertamente, fariam singulares revelações sobre o passado.
Algumas pessoas creem ter a vaga lembrança de um passado desconhecido, vislumbrado como imagem fugitiva de um sonho, que em vão se procura deter. Essa ideia não seria uma ilusão?
Algumas vezes é real; mas quase sempre é também uma ilusão, contra a qual se deve precaver, pois pode ser o efeito de uma imaginação superexcitada.
Nas existências corpóreas de natureza mais elevada que a nossa, a lembrança das existências anteriores é mais precisa, à medida que o corpo é menos material, recorda-se melhor. A lembrança do passado é mais clara para aqueles que habitam os mundos de uma ordem superior.
As tendências instintivas do homem, sendo uma reminiscência do seu passado, pelo estudo dessas tendências ele poderá conhecer as faltas que cometeu, até certo ponto; mas é necessário ter em conta a melhora que se possa ter operado no Espírito e as resoluções que ele tomou no seu estado errante. A existência atual pode ser muito melhor que a precedente.
O homem poderá ou não, cometer numa existência faltas não cometidas na precedente. Isso depende do seu adiantamento. Se ele não souber resistir às provas, pode ser arrastado a novas faltas, que serão a consequência da posição por ele mesmo escolhida. Mas, em geral, essas faltas denunciam antes um estado estacionário do que retrógrado, porque o Espírito pode avançar ou se deter, mas não recuar.
Sendo as vicissitudes da vida corpórea ao mesmo tempo uma expiação das faltas passadas e provas para o futuro, segue-se que, da natureza dessas vicissitudes, muito frequentemente, possa induzir-se o gênero da existência anterior, pois cada um é punido naquilo em que pecou. Entretanto, não se deve tirar daí uma regra absoluta; as tendências instintivas são um índice mais seguro, porque as provas que um Espírito sofre, tanto se referem ao futuro quanto ao passado.
Comentário de Kardec: Chegado ao termo que a Providência marcou para a sua vida errante, o Espírito escolhe por ele mesmo as provas às quais deseja submeter-se, para apressar o seu adiantamento, ou seja, o gênero de existência que acredita mais apropriado a lhe fornecer os meios, e essas provas estão sempre em relação com as faltas que deve expiar. Se nelas triunfa, ele se eleva; se sucumbe, tem de recomeçar.
O Espírito goza sempre do seu livre-arbítrio. É em virtude dessa liberdade que, no estado de Espírito, escolhe as provas da vida corpórea e, no estado de encarnado, delibera o que fará ou não fará, escolhendo entre o bem e o mal. Negar ao homem o livre-arbítrio seria reduzi-lo à condição de máquina.
Integrado na vida corpórea, o Espírito perde momentaneamente a lembrança de suas existências anteriores, como se um véu as ocultasse. Não obstante, tem, às vezes, uma vaga consciência, e elas podem mesmo lhe ser reveladas em certas circunstâncias. Mas isto não acontece senão pela vontade dos Espíritos superiores, que o fazem espontaneamente, com um fim útil e jamais para satisfazer uma curiosidade vã.
As existências futuras não podem ser reveladas em caso algum, por dependerem da maneira por que se cumpre a existência presente e da escolha ulterior do Espírito.
O esquecimento das faltas cometidas não é obstáculo à melhoria do Espírito porque, se ele não tem uma lembrança precisa, o conhecimento que delas teve no estado errante e o desejo que concebeu de as reparar guiam-no pela intuição e lhe dão o pensamento de resistir ao mal. Este pensamento é a voz da consciência, secundada pelos Espíritos que o assistem, se ele atende às boas inspirações que estes lhe sugerem.
Se o homem não conhece os próprios atos que cometeu em suas existências anteriores, pode sempre saber qual o gênero de faltas de que se tornou culpado e qual era o seu caráter dominante. Basta que se estude a si mesmo e poderá julgar o que foi, não pelo que é. mas pelas suas tendências.
A natureza das vicissitudes e das provas que sofremos pode também esclarecer-nos sobre o que fomos e o que fizemos, como neste mundo julgamos os atos de um criminoso pelo castigo que a lei lhe inflige. Assim, este será castigado no seu orgulho pela humilhação de uma existência subalterna; o mau rico e avarento, pela miséria; aquele que foi duro para os outros, pelos tratamentos duros que sofrerá; o tirano, pela escravidão; o mau filho, pela ingratidão dos seus filhos; o preguiçoso, por um trabalho forçado etc.
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