CAPÍTULO XVI
NÃO SE PODE SERVIR A
DEUS E A MAMON
Salvação dos ricos. – Guardar-se da avareza. - Jesus na casa
de Zaqueu. – Parábola do mau rico. – Parábola dos talentos. – Utilidade
providencial da fortuna. – Provas da riqueza e da miséria. – Desigualdade das
riquezas. – Instruções dos Espíritos: A verdadeira propriedade. – Emprego da
fortuna. – Desprendimento dos bens terrenos. – transmissão da fortuna.
DESPRENDIMENTO DOS BENS
TERRENOS
LACORDAIRE, Constantina, Argélia, 1863
14 – Venho,
meus irmãos, meus amigos, trazer-vos meu humilde auxílio, para ajudar-vos a
marchar corajosamente na via de aperfeiçoamento em que entrastes. Somos devedores uns dos outros, e somente
por uma união sincera e fraternal, entre os Espíritos e os encarnados, a
regeneração será possível.
Vosso apego aos bens terrenos é um dos mais fortes entraves ao vosso
adiantamento moral e espiritual. Em virtude
desse desejo de aquisição, destruís as vossas faculdades afetivas, voltando-as
inteiramente para as coisas materiais.
Sede sinceros: a fortuna
proporciona uma felicidade sem manchas? Quando os vossos cofres estão cheios,
não há sempre um vazio em vossos corações? No fundo dessa cesta de flores, não
há sempre um réptil oculto? Compreendo que um homem que conquistou a fortuna,
por um trabalho constante e honrado, experimente por isso uma satisfação, aliás
muito justa. Mas, desta satisfação muito natural e que Deus aprova, a um apego
que absorve os demais sentimentos e paralisa os impulsos do coração, há uma
distância, igual e que vai da sórdida avareza à prodigalidade exagerada, dois
vícios entre os quais Deus colocou a caridade, santa e salutar virtude, que
ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem humilhação.
Que a fortuna provenha da vossa família,
ou que a tenhais ganho pelo vosso trabalho, há uma coisa que jamais deveis
esquecer: é que tudo vem de Deus, e tudo a Deus retorna. Nada vos pertence
na Terra, nem sequer o vosso corpo: a morte despoja dele, como de todos os bens
materiais. Sois depositários e não
proprietários. Não vos enganeis sobre isto. Deus vos emprestou e tereis que
restituir, mas ele vos empresta sob a condição de que, pelo menos o supérfluo,
reverta para aqueles que não possuem o necessário.
Um dos vossos amigos vos empresta uma soma. Por menos honesto que sejais, tereis
o escrúpulo de pagá-la, e lhe ficareis agradecido. Pois bem: eis a posição de
todo homem rico! Deus é o amigo celeste que lhe emprestou a riqueza, não lhe
pedindo mais do que o amor e o reconhecimento, mas exigindo, por sua vez, que o
rico dê aos pobres, que são também seus filhos, tanto quanto ele.
O bem que deus vos confiou excita em vossos corações uma ardente e desvairada
cobiça. Já refletistes, quando vos apegais loucamente a uma fortuna perecível,
e tão passageira como vós mesmos, que um dia tereis de prestar contas ao Senhor
daquilo que Ele vos concedeu? Esquecei que, pela riqueza, fostes investidos na
sagrada condição de ministros da caridade na Terra, para serdes os seus
dispensadores inteligentes? O que sereis, pois, quando usais somente em vosso
proveito o que vos foi confiado, senão depositários infiéis? Que resulta desse
esquecimento voluntário dos vossos deveres? A morte inflexível, inexorável,
virá rasgar o véu sob o qual vos escondeis, forçando-vos a prestar contas ao
amigo que vos favoreceu, e que nesse momento reveste aos vossos olhos a toga de
juiz.
É em vão que procurais iludir-vos na vida terrena, cobrindo com o nome de
virtude o que frequentemente é apenas egoísmo. É em vão que chamais economia e
previdência aquilo que é simples cupidez e avareza, ou generosidade o que não
passa de prodigalidade a vosso proveito. Um pai de família, por exemplo,
deixando de fazer a caridade, economizará, amontoará ouro sobre ouro, e tudo
isso, diz ele, para deixar a seus filhos o máximo de bens possível,
evitando-lhes a queda na miséria. É bastante justo e bem paternal, convenhamos,
e não se pode censurá-lo. Mas será sempre esse o único objetivo que o orienta?
Não é antes, e o mais das vezes, uma desculpa para a própria consciência, a fim
de justificar aos seus próprios olhos e aos olhos do mundo o seu apego pessoal
aos bens terrenos? Não obstante, admito que o amor paterno seja o seu único
móvel: será esse um motivo para fazê-lo esquecer dos seus irmãos perante Deus?
Quando ele mesmo já vive no supérfluo, deixará os seus filhos na miséria,
simplesmente por deixar-lhes um pouco menos desse supérfluo? Com isso, não
estará lhes dando uma lição de egoísmo, que lhes endurecerá o coração? Não será
asfixiar neles o amor do próximo? Pais e mães, estais num grande erro, se
acreditais que com isso aumentais o afeto de vossos filhos por vós:
ensinando-lhes a ser egoísta para com os outros, ensinai-lhes a sê-lo para vós
mesmos.
Quando um homem trabalhou bastante, e com o suor do seu rosto acumulou bens,
costuma dizer que o dinheiro ganho a gente sabe quanto custou: nada é mais
verdadeiro. Pois bem: que esse homem, confessando conhecer todo o valor do
dinheiro, faça a caridade segundo as suas posses, e terá mais mérito do que
outro que, nascido na abundância, ignora as rudes fadigas do trabalho. Mas, se
esse homem que recorda suas penas, seus esforços, se fizer egoísta, duro para
com os pobres, será muito mais culpado que os outros. Porque, quanto mais conhecemos
por nós mesmos as dores ocultas da miséria, mais devemos interessar-nos pelo
socorro aos outros.
Infelizmente, o homem de posse carrega sempre consigo outro sentimento, tão
forte como o apego à fortuna: é o orgulho. Não é raro ver-se o novo rico
aturdir o infeliz que lhe pede assistência, com a história dos seus trabalhos e
das suas habilidades, em vez de ajudá-lo, e terminar por dizer: “Faça como eu
fiz!” Segundo ele, a bondade de Deus não influiu em nada na sua fortuna;
somente a ele cabe o mérito. Seu orgulho coloca-lhe uma venda nos olhos e um
tampão nos ouvidos. Não compreende que, com toda a sua inteligência e sua
capacidade, Deus pode derrubá-lo com uma só palavra.
Esperdiçar a fortuna não é
desapegar-se dos bens terrenos, é descuido e indiferença. O homem, como
depositário dos bens que possui, não tem o direito de dilapidá-los ou de
confiscá-los para o seu proveito. A prodigalidade não é generosidade, mas quase
sempre uma forma de egoísmo. Aquele que joga ouro a mancheias na satisfação de
uma fantasia, não dará um centavo para prestar um auxílio. O desapego dos bens
terrenos consiste em considerar a fortuna no seu justo valor em saber servir-se
dela para os outros e não apenas para si mesmo, a não sacrificar por ela os
interesses da vida futura, em perdê-la sem reclamar, se aprouver a Deus
retirá-la. Se, por imprevistos revezes, vos tornardes como Jó, dizei como ele:
“Senhor, vós me destes, vós me tirastes; que a Vossa vontade seja feita”. Eis o
verdadeiro desprendimento. Sede submissos desde logo, tendo fé naquele que,
assim como vos deu e tirou, pode devolver-vos. Resisti corajosamente ao
abatimento, ao desespero, que paralisaria as vossas forças. Nunca vos
esqueçais, quando Deus vos desferir um golpe, que ao lado da maior prova, ele
coloca sempre uma consolação. Mas pensai, sobretudo, que há bens infinitamente
mais preciosos que os da Terra, e esse pensamento vos ajudará a desprender-vos
deles.
Quanto menos apreço damos a uma
coisa, somos menos sensíveis à sua perda. O homem que se apega aos bens
terrenos é como a criança que só vê o momento presente; o que se desprende é
como o adulto, que conhece coisas mais importantes, porque compreende estas palavras proféticas
do Salvador: meu reino não é deste mundo.
O Senhor não ordena que atiremos fora o que possuímos, para nos tornarmos
mendigos voluntários, porque então nos transformaríamos numa carga para a
sociedade. Agir dessa maneira seria compreender mal os desprendimentos dos bens
terrenos. É um egoísmo de outra espécie, porque equivale a fugir à
responsabilidade que a fortuna faz pesar sobre aquele que a possui. Deus a dá a quem lhe parece bom para
administrá-la em proveito de todos. O rico tem, portanto, uma missão, que
pode tornar bela e proveitosa para si mesmo. Rejeitar a fortuna, quando Deus quando
a dá, é renunciar aos benefícios do bem que se pode fazer, ao administrá-la com
sabedoria. Saber passar sem ela, quando não a temos; saber empregá-la
utilmente, quando a recebemos; saber sacrificá-la, quando necessário; isto é
agir segundo os desígnios do Senhor. Que diga, portanto, aquele que recebe o
que o mundo chama uma boa fortuna: “Meu Deus, enviastes-me um novo encargo;
dai-me a força de o desempenhar segundo a vossa santa vontade!”
Eis, meus amigos, o que eu queria ensinar-vos, a respeito do desprendimento dos
bens terrenos. Resumirei dizendo: aprendei a contentar-vos com pouco. Se sois
pobres, não invejeis o ricos, porque a fortuna não é necessária à felicidade.
Se sois ricos, não esqueçais de que os vossos bens vos foram confiados, e que
deveis justificar o seu emprego, como numa prestação de contas de tutela. Não
sejais depositários infiéis, fazendo-os servir à satisfação do vosso orgulho e
da vossa sensualidade. Não vos julgueis no direito de dispor deles unicamente para
vós, pois não os recebestes como doação, mas como empréstimo. Se não sabeis
pagar, não tendes o direito de pedir, e lembrai-vos de que dar aos pobres é
saldar a dívida contraída para com Deus.
SÃO LUIS, Paris, 1860
15 – O princípio segundo o qual o homem é apenas
o depositário da fortuna, de que Deus lhe permite gozar durante a vida,
tira-lhe o direito de transmiti-la aos
descendentes?
O homem pode perfeitamente transmitir, ao morrer, os bens de que gozou durante
a vida, porque a execução desse direito está sempre subordinada à vontade de
Deus, que pode, quando o quiser, impedir que os descendentes venham a gozá-los.
É por isso que vemos ruírem fortunas que pareciam solidamente estabelecidas. A
vontade do homem, de conservar a sua fortuna na linha de sua descendência, é
portanto impotente. Mas isso não lhe tira o direito de transmitir o empréstimo
recebido, desde que Deus o retirará quando julgar conveniente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário