LIVRO
QUARTO
ESPERANÇAS
E CONSOLAÇÕES
CAPÍTULO
I- PENAS E GOZOS TERRENOS
I-
Felicidades e Infelicidades Relativas
(Questão 920 a 933)
O homem não pode gozar na Terra uma felicidade completa, pois a vida lhe
foi dada como prova ou expiação, mas dele depende abrandar os seus males e
ser tão feliz, quanto se pode ser na Terra.
O homem é, na maioria das vezes, o artífice de sua
própria infelicidade. Praticando a lei de Deus, ele pode poupar-se a
muitos males e gozar de uma felicidade tão grande quanto o comporta a sua
existência num plano grosseiro.
Comentário de Kardec: O homem bem
compenetrado do seu destino futuro não vê na existência corpórea mais do que
uma rápida passagem. É como uma parada momentânea numa hospedaria precária. Ele
se consola facilmente de alguns aborrecimentos passageiros, numa viagem que
deve conduzi-lo a uma situação tanto melhor quanto mais atenciosamente tenha
feito os seus preparativos para ela.
Somos punidos nesta vida pelas
infrações que cometemos às leis da existência corpórea, pelos próprios males
decorrentes dessas infrações e pelos nossos próprios excessos Se remontarmos
pouco a pouco à origem do que chamamos infelicidades terrenas veremos a estas,
na sua maioria, como a consequência de um primeiro desvio do caminho certo. Em
virtude desse desvio inicial, entramos num mau caminho e de consequência em
consequência, caímos afinal na desgraça.
A felicidade terrena é relativa à posição de cada um; o que e suficiente
para a felicidade de um faz a desgraça de outro. É preciso compreender que para
a vida material, a posse do necessário; para a vida moral, a consciência
pura e a fé no futuro.
Aquilo que seria supérfluo para um não se torna o necessário para outro, e
vice-versa, segundo a posição, pois de acordo com as vossas ideias materiais,
os vossos preconceitos, a vossa ambição e todos os vossos caprichos
ridículos, para os quais o futuro fará justiça quando tiverdes a
compreensão da verdade. Sem dúvida, aquele que tivesse uma renda de
cinquenta mil libras e a visse reduzida a dez. mil, considerar-se-ia muito
infeliz, por não poder continuar fazendo boa figura, mantendo o que chama
a sua classe, ter bons cavalos e lacaios, satisfazer a todas as paixões
etc. Julgaria faltar-lhe o necessário. Mas francamente, podes considerá-lo
digno de lástima, quando ao seu lado há os que morrem de fome e de frio,
sem um lugar em que repousar a cabeça! O homem sensato, para ser feliz,
olha para baixo e jamais para os que lhe estão acima, a não ser para
elevar sua alma ao infinito.
Existem males que não dependem da maneira de agir e que ferem o homem
mais justo. O atingido deve resignar-se e sofrer sem queixa, se
deseja progredir. Entretanto, encontra sempre uma consolação na sua própria consciência, que
lhe dá a esperança de um futuro melhor, quando ele faz. o necessário para
obtê-lo.
Deus beneficia com os bens da fortuna certos homens que não parecem
merecê-los porque esse é um favor aos olhos daqueles que não enxergam além
do presente; mas sabei-o, a fortuna e uma prova geralmente mais perigosa
que a miséria.
A civilização, criando novas necessidades, é a fonte de novas aflições?
Pois os males deste mundo estão na razão das necessidades artificiais que
criais para vós mesmos. Aquele que sabe limitar os seus desejos e ver sem
cobiça o que estafara das suas possibilidades, poupa-se a muitos aborrecimentos
nesta vida. O mais rico é aquele que tem menos necessidades
Invejais os prazeres dos
que vos parecem os felizes do mundo Mas sabeis, por acaso, o que lhes está
reservado? Se não gozam senão para si mesmos, são egoístas e terão de
sofrera reverso. Lamentai-os, antes de invejá-los!
Deus, às vezes, permite que o mau prospere, mas essa felicidade não
é para se invejar, porque a pagará com lágrimas amargas. Se o justo é
infeliz é porque passa por uma prova que lhe será levada em conta, desde
que a saiba suportar com coragem. Lembrai-vos das palavras de Jesus:
“Bem-aventurados os que sofrem, porque serão consolados”.
O supérfluo não é, por certo, indispensável à felicidade, mas não se dá o
mesmo com o necessário. Ora, o homem não é verdadeiramente desgraçado senão
quando sente a falta daquilo que lhe é necessário para a vida e a saúde do
corpo. Essa privação e talvez a consequência de sua própria falta e então
ele só deve queixar-se de si mesmo. Se a falta fosse de outro, a
responsabilidade caberia a quem a tivesse causado.
Pela natureza especial das aptidões naturais, Deus indica evidentemente a
nossa vocação neste mundo. Muitos males não provêm do fato de não seguirmos
essa vocação. Isso é verdade, e muitas vezes são os pais que, por orgulho ou
avareza fazem os filhos se desviarem do caminho traçado pela
Natureza comprometendo-lhes com isso a felicidade. Mas serão responsabilizados.
Porém, não se precisa cair no absurdo nem no exagero: a civilização tem
as suas necessidades. Por que o filho de um homem da alta sociedade
como dizes, teria de fazer tamancos, se pode fazer outras coisas? Ele
poderá sempre se tornar útil na medida de suas faculdades, se não as
aplicar em sentido contrário. Assim, por exemplo, em vez de um mau
advogado, poderia ser talvez um bom mecânico etc.
Comentário de Kardec: O deslocamento
de sua esfera intelectual é seguramente uma das causas mais frequentes de
decepção. A inaptidão para a carreira abraçada é uma fonte inesgotável de
reveses. Depois, o amor-próprio vem juntar-se a isso, impedindo o homem de
recorrer a uma profissão mais humilde e lhe mostra o suicídio como o
supremo remédio para escapar ao que ele julga uma humilhação. Se uma educação
moral o tivesse preparado acima dos tolos preconceitos do orgulho, jamais ele
seria apanhado desprevenido.
Há pessoas que, privadas de todos os recursos, mesmo quando reine a
abundância em seu redor, não veem outra perspectiva de solução para o seu caso
a não ser a morte. Nesse caso, o homem jamais deve ter a ideia de se
deixar morrer de fome, pois sempre encontraria meios de se alimentar, se o
orgulho não se interpusesse entre a necessidade e o trabalho. Frequentemente
dizemos que não há profissões humilhantes e que não é o ofício de desonra; mas
dizemos para os outros e não para nós.
É evidente que, sem os preconceitos sociais, pelos quais se deixa
dominar, o homem sempre encontraria um trabalho qualquer que o pudesse ajudar a
viver, mesmo deslocado de sua posição. Numa sociedade organizada segundo a lei
do Cristo, ninguém deve morrer de fome.
Comentário de Kardec: Com uma
organização social previdente e sábia, o homem não pode sofrer necessidades, a
não ser por sua culpa. Mas as próprias culpas do homem são frequentemente o
resultado do meio em que ele vive. Quando o homem praticar a lei de Deus,
disporá de uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e com isso
mesmo ele será melhor.
As classes sociais sofredoras não são mais numerosas do que as
supostamente felizes, pois que nenhuma é perfeitamente feliz, pois aquilo que
se considera a felicidade muitas vezes oculta pungentes aflições. O sofrimento
está por toda parte. Entretanto, para responder ao teu pensamento, direi que as
classes a que chamas sofredoras são mais numerosas porque a Terra é um lugar de
expiação. Quando o homem a tiver transformado em morada do bem e dos bons
espíritos, não mais será infeliz nesse mundo, que será para ele o paraíso
terrestre.
Neste mundo, os maus exercem geralmente maior influência sobre os
bons por causa da fraqueza dos bons. Os maus são intrigantes e audaciosos; os
bons são tímidos. Estes, quando quiserem, assumirão a preponderância.
Se é o homem, em geral, o artífice dos seus sofrimentos materiais sê-lo-á
também dos sofrimentos morais, mais ainda, pois os sofrimentos materiais são,
às vezes, independentes da vontade, enquanto o orgulho ferido, a ambição
frustrada, a ansiedade da avareza, a inveja, o ciúme, todas as paixões, enfim
constituem torturas da alma.
Inveja e ciúme!, felizes os que não conhecem esses dois
vermes vorazes. Com a inveja e o ciúme, não há calma, não há repouso
possível. Para aquele que sofre desses males, os objetos da sua
cobiça, do seu ódio e do seu despeito; se erguem diante dele como fantasmas que
não o deixam em paz e o perseguem até no sono. O invejoso e o ciumento vivem
num estado de febre contínua. É essa uma situação desejável? Não compreendeis
que, com essas paixões, o homem cria para si mesmo suplícios voluntários e que
a Terra se transforma para ele num verdadeiro inferno?
Comentário de Kardec: Muitas
expressões figuram energicamente os efeitos de algumas paixões. Diz-se: está
inchado de orgulho, morrer de inveja, secar de ciúme ou de despeito, perder
o apetite por ciúmes etc. esse quadro nos dá bem a verdade. Às vezes, o ciúme
nem tem objeto determinado. Há pessoas que se mostram naturalmente ciumentas de
todos os que se elevam, de todos os que saem da vulgaridade, mesmo quando não
tenham no caso nenhum interesse direto, mas unicamente por não poderem atingir
o mesmo plano. Tudo aquilo que parece acima do horizonte comum as ofusca, e, se
formassem a maioria da sociedade, tudo desejariam rebaixar ao seu próprio
nível. Temos nestes casos o ciúme aliado à mediocridade.
O homem é infeliz, geralmente,
pela importância que liga às coisas deste mundo. A vaidade, a
ambição e a cupidez fracassadas o fazem infeliz. Se ele se elevar acima do círculo
estreito da vida material, se elevar o seu pensamento ao infinito, que é o seu
destino, as vicissitudes da Humanidade lhe parecerão mesquinhas e
pueris, como as mágoas da criança que se aflige pela perda de um brinquedo que
representava a sua felicidade suprema.
Aquele que só encontra a
felicidade na satisfação do orgulho e dos apetites grosseiros é infeliz quando
não os pode satisfazer, enquanto o que não se interessa pelo supérfluo se sente
feliz com aquilo que para os outros constituiria infortúnio.
Referimo-nos aos homens
civilizados porque o selvagem, tendo necessidades mais limitadas, não tem os
mesmos motivos de cobiça e de angústias; sua maneira de ver as coisas é muito
diferente. No estado de civilização, o homem pondera a sua infelicidade, a
analisa, e por isso é mais afetado por ela, mas pode também ponderar e analisar
os seus meios de consolação. Esta consolação ele a encontra no sentimento
cristão, que lhe dá a esperança de um futuro melhor, e no Espiritismo, que lhe
dá a certeza do futuro(1).
(1) Consultar “A Gênese”, onde Kardec analisa os
motivos do aparecimento do Espiritismo em meados do século dezenove, quando o
mundo atingia um estado de adiantada civilização. O conhecimento da realidade
espírita da vida só é possível, em sua plenitude, em mundos civilizados,
da mesma maneira que no estado de civilização esse conhecimento é um imperativo
do próprio progresso e um meio de acelera-lo.(Ver “A Gênese”, cap. I, itens 16
a 18 e particularmente o período final deste último.) (N. do T.)
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